quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Um sítio onde pousar a cabeça - documentário sobre Manuel António Pina


A jaula



Lá fora faz sol.
Não é mais que um sol
mas os homens olham-no
e depois cantam.

Eu não sei do sol.
Sei a melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até a aurora
quando a morte pousa nua
em minha sombra.

Choro debaixo do meu nome.
Aceno lenços na noite
e barcos sedentos de realidade
dançam comigo.
Oculto cravos
para escarnecer meus sonhos enfermos.

Lá fora faz sol.
Eu me visto de cinzas.

Alejandra Pizarnik
Tradução de Virna Teixeira

Estudos camonianos

Estavas linda, Inês, e Camões
decerto não se importará
se eu disser que tinhas
posta no lugar a carne inteira
do meu futuro desassossego.

Aos poucos vai o corpo apodrecendo,
gentil da terra furor de que esquecemos
notícia e lastro, entretidos a morrer
por novas avenidas velhas
que em breve nos não verão mais,
apartados pela vidinha.

Mas estavas tu linda, Inês,
alheia ou talvez nem tanto
ao cego conhecido engano
que por vezes se dissipa
antes mesmo de existir.

Manuel de Freitas, A última Porta

sábado, 12 de janeiro de 2013


O PENÚLTIMO POEMA DE AMOR

empurro a porta com o peso do corpo, cada vez mais pesado

da idade, entre outras desculpas não tão gordas,

o mecanismo das mãos faz-me uma estimativa

aproximando as horas e os cigarros,

só cabe um dedo no maço, estou satisfeito

deixo-me ir, sonâmbulo, como que tele-guiado

com headphones nos ouvidos, sem chegar a premir o play,

contento-me com o sinal de estática por uma questão estética

um visual que se inspira numa ideia fixa que eu tenho,

chamo-lhe ausência

o elevador chega, desço ao zero, à rua, ao trânsito

ultrapassando outras dessas coisas que conjugam o dia-a-dia,

entro no parque de estacionamento, pago claro

e daí sou entregue a um desses paraísos artificiais

onde os corpos mais óbvios, como os prefiro nestes meus poemas,

se movem animados por uma corrente alternativa, doses necessárias

de euforia, essa droga típica dos meus suicidas / o que seria de mim,

aliás,

sem a paixão que lhes tenho -

como gosto de os ver ajuntados

naquela agitação de ideias, crimes tão puros, asfixiando-se

face à montra de uma loja cheia de nuvens onde planam

jóias de um brilho que deixa no lixo corações

 

vou-me concentrando nesse êxtase e parece

que lhes adivinho as ordinarices com que se massacram,

chantagens emocionais, todo um enredo de agressões doentias

e eu sinto-me suar de ansiedade

quando com o pé direito entram na loja,

são prontamente abordados por um sorriso

prenhe de violência a que entregam aquele olhar das vítimas

e eu cá fora inclino-me, sei que está prestes a acontecer

quando pedem para ver mais de perto e

depois, chega aquela pausa,

o estremecer das pálpebras

a alteração do ritmo cardíaco

uma dor demasiado certeira

a inquietação e finalmente

leio nos lábios aquela variação triste de curtas palavras,

quando a empregada se vira e fecha a luz, já é tarde demais

oiço um disparo e afasto-me

 

pessoalmente gosto de relógios o mais estupidamente caros possível,

aqueles bem exuberantes, os que melhor disfarçam a espiral

por onde descende uma vida, também gosto de perfumes,

desde os anúncios à embalagem, o aparato todo,

o cheiro em si já não me diz muito,

prefiro odor lento do envelhecimento

 

gosto das promessas, dos segredos, dos truques,

das promoções e acima de tudo das ofertas, isso é mesmo

o que mais gosto / gosto dos meus corpos assim, óbvios,

gosto de os ver dançar ao ritmo desta demência

que se torna tão certa e previsível,

gosto de como tiram pedaços do coração

gosto muito de os ver cair, e sobretudo gosto de me desviar

naquele último momento de vertigem antes de atingirem o chão.

 

Diogo Vaz Pinto

in criatura

2008

 
 
  


 




quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Chico

Talvez não fosses forte
para a felicidade,
nem para o medo.

Olha as pessoas felizes:
ocultam-se na felicidade
como em casa erguem

muros, fecham as janelas,
o medo
é a sua fortaleza

O que disputam à morte
é maior que elas, 
a morte não lhes basta.

Manuel António Pina, em "Cuidados Intensivos"