sábado, 12 de janeiro de 2013


O PENÚLTIMO POEMA DE AMOR

empurro a porta com o peso do corpo, cada vez mais pesado

da idade, entre outras desculpas não tão gordas,

o mecanismo das mãos faz-me uma estimativa

aproximando as horas e os cigarros,

só cabe um dedo no maço, estou satisfeito

deixo-me ir, sonâmbulo, como que tele-guiado

com headphones nos ouvidos, sem chegar a premir o play,

contento-me com o sinal de estática por uma questão estética

um visual que se inspira numa ideia fixa que eu tenho,

chamo-lhe ausência

o elevador chega, desço ao zero, à rua, ao trânsito

ultrapassando outras dessas coisas que conjugam o dia-a-dia,

entro no parque de estacionamento, pago claro

e daí sou entregue a um desses paraísos artificiais

onde os corpos mais óbvios, como os prefiro nestes meus poemas,

se movem animados por uma corrente alternativa, doses necessárias

de euforia, essa droga típica dos meus suicidas / o que seria de mim,

aliás,

sem a paixão que lhes tenho -

como gosto de os ver ajuntados

naquela agitação de ideias, crimes tão puros, asfixiando-se

face à montra de uma loja cheia de nuvens onde planam

jóias de um brilho que deixa no lixo corações

 

vou-me concentrando nesse êxtase e parece

que lhes adivinho as ordinarices com que se massacram,

chantagens emocionais, todo um enredo de agressões doentias

e eu sinto-me suar de ansiedade

quando com o pé direito entram na loja,

são prontamente abordados por um sorriso

prenhe de violência a que entregam aquele olhar das vítimas

e eu cá fora inclino-me, sei que está prestes a acontecer

quando pedem para ver mais de perto e

depois, chega aquela pausa,

o estremecer das pálpebras

a alteração do ritmo cardíaco

uma dor demasiado certeira

a inquietação e finalmente

leio nos lábios aquela variação triste de curtas palavras,

quando a empregada se vira e fecha a luz, já é tarde demais

oiço um disparo e afasto-me

 

pessoalmente gosto de relógios o mais estupidamente caros possível,

aqueles bem exuberantes, os que melhor disfarçam a espiral

por onde descende uma vida, também gosto de perfumes,

desde os anúncios à embalagem, o aparato todo,

o cheiro em si já não me diz muito,

prefiro odor lento do envelhecimento

 

gosto das promessas, dos segredos, dos truques,

das promoções e acima de tudo das ofertas, isso é mesmo

o que mais gosto / gosto dos meus corpos assim, óbvios,

gosto de os ver dançar ao ritmo desta demência

que se torna tão certa e previsível,

gosto de como tiram pedaços do coração

gosto muito de os ver cair, e sobretudo gosto de me desviar

naquele último momento de vertigem antes de atingirem o chão.

 

Diogo Vaz Pinto

in criatura

2008

 

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