O PENÚLTIMO POEMA DE AMOR
empurro a porta com o peso
do corpo, cada vez mais pesado
da idade, entre outras
desculpas não tão gordas,
o mecanismo das mãos faz-me
uma estimativa
aproximando as horas e os
cigarros,
só cabe um dedo no maço,
estou satisfeito
deixo-me ir, sonâmbulo,
como que tele-guiado
com headphones nos ouvidos,
sem chegar a premir o play,
contento-me com o sinal de
estática por uma questão estética
um visual que se inspira
numa ideia fixa que eu tenho,
chamo-lhe ausência
o elevador chega, desço ao
zero, à rua, ao trânsito
ultrapassando outras dessas
coisas que conjugam o dia-a-dia,
entro no parque de
estacionamento, pago claro
e daí sou entregue a um
desses paraísos artificiais
onde os corpos mais óbvios,
como os prefiro nestes meus poemas,
se movem animados por uma
corrente alternativa, doses necessárias
de euforia, essa droga
típica dos meus suicidas / o que seria de mim,
aliás,
sem a paixão que lhes tenho
-
como gosto de os ver
ajuntados
naquela agitação de ideias,
crimes tão puros, asfixiando-se
face à montra de uma loja
cheia de nuvens onde planam
jóias de um brilho que
deixa no lixo corações
vou-me concentrando nesse
êxtase e parece
que lhes adivinho as
ordinarices com que se massacram,
chantagens emocionais, todo
um enredo de agressões doentias
e eu sinto-me suar de
ansiedade
quando com o pé direito
entram na loja,
são prontamente abordados
por um sorriso
prenhe de violência a que
entregam aquele olhar das vítimas
e eu cá fora inclino-me,
sei que está prestes a acontecer
quando pedem para ver mais
de perto e
depois, chega aquela pausa,
o estremecer das pálpebras
a alteração do ritmo
cardíaco
uma dor demasiado certeira
a inquietação e finalmente
leio nos lábios aquela
variação triste de curtas palavras,
quando a empregada se vira
e fecha a luz, já é tarde demais
oiço um disparo e afasto-me
pessoalmente gosto de
relógios o mais estupidamente caros possível,
aqueles bem exuberantes, os
que melhor disfarçam a espiral
por onde descende uma vida,
também gosto de perfumes,
desde os anúncios à
embalagem, o aparato todo,
o cheiro em si já não me
diz muito,
prefiro odor lento do
envelhecimento
gosto das promessas, dos
segredos, dos truques,
das promoções e acima de
tudo das ofertas, isso é mesmo
o que mais gosto / gosto
dos meus corpos assim, óbvios,
gosto de os ver dançar ao
ritmo desta demência
que se torna tão certa e
previsível,
gosto de como tiram pedaços
do coração
gosto muito de os ver cair,
e sobretudo gosto de me desviar
naquele último momento de
vertigem antes de atingirem o chão.
Diogo Vaz Pinto
in criatura
2008
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